É um saco. Você liga a TV e as mesmas palavras aparecem:
desvio de dinheiro público, improbidade administrativa, caixa 2. Sem falar nos
deslizes que os governos cometem mesmo quando são bem-intencionados. Diante de
tanta desilusão com a política no Brasil, muita gente decide chutar o balde,
recusar todos os candidatos de uma vez e votar nulo. Outros se perguntam se,
afinal de contas, o ato de anular tem algum valor para melhorar o país. No Orkut,
o site de relacionamentos, há 55 comunidades que tratam explicitamente do voto
nulo: 44 são a favor; 8, contra; 3 registram prós e contras, sem posição
firmada. O assunto também está na TV. A MTV, em agosto, foi acusada de fazer
propaganda do voto nulo em uma vinheta que sugeria ao público jogar ovos e
tomates nos políticos. No ano de 2002, a última eleição presidencial, 7 milhões
de brasileiros escolheram votar nulo. Será que esses votos são resultado de uma
atitude digna? Ou significaram simplesmente tomar uma decisão alienada de jogar
um direito no lixo?
Na história, o voto nulo já foi uma bandeira ideológica.
Era uma idéia básica dos anarquistas, um dos movimentos utópicos que nasceram
no século 19 e fizeram sucesso no começo do século 20. Para eles, votar nulo
era uma condição para manter a própria liberdade, se recusando a entregá-la na
mão de um líder. Anarquistas como o filósofo francês Pierre-Josef Proudhon não
viam grande diferença entre reis tiranos que oprimiam seus súditos e
presidentes eleitos pela maioria. “Não mais partidos, não mais autoridade,
liberdade absoluta do homem e do cidadão”, pregava Proudhon. O sonho dos
anarquistas era uma sociedade organizada pelas próprias pessoas, sem
funcionários, sem autoridades e sem líderes.
Hoje, esse discurso utópico está empoeirado. Parece coisa
do passado. Mas há quem se pergunte se um pouco da utopia da década de 1930 não
serviria como uma opção coerente diante de tantos problemas e absurdos da
democracia. A favor ou contra o voto nulo, todos concordam que o atual sistema
político do Brasil tem problemas muito mais profundos que a escolha de um ou
outro candidato. Segundo o IBGE, mais de 30% dos brasileiros não sabem quem é o
governador de seu estado. Dois em cada 10 brasileiros não conseguem dizer quem
é o presidente da República, e só 18% praticaram alguma ação política, como
fazer uma reclamação ou preencher um abaixo-assinado. “A democracia virou um
espetáculo de televisão que emerge apenas durante a época de eleições”, afirma
o sociólogo Edson Passetti, pesquisador do Departamento de Política da PUC-SP.
“O cidadão renunciou a sua consciência crítica e migrou para uma posição de
opinião pública, que é forjada pela televisão.” Para Passetti, votar nulo não
serve para eliminar corruptos da política, mas pode funcionar como uma crítica
generalizada. “Optar pelo voto nulo é saudável como protesto contra todo um
sistema.”
Anular também parece uma boa para quem não se contenta ou
não vê diferença entre os candidatos. “Política é escolha. E o voto nulo é uma
escolha como qualquer outra”, afirma Francisco de Oliveira, professor de
Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Não se trata de um acadêmico que
enxerga a política apenas teoricamente. Hoje com 71 anos, Francisco participou
do governo do presidente João Goulart até 1964. Com o golpe militar, teve que
sair do Brasil para não ser perseguido pela ditadura. Na década de 1980, se
uniu a um grupo de amigos e ajudou a fundar o PT, partido com a maior bancada
na Câmara dos Deputados. Mas, na próxima eleição, se o segundo turno se
confirmar entre os dois candidatos a presidente líderes nas pesquisas,
Francisco pretende anular. “Como os candidatos já abdicaram da política para
seguir a ordem financeira internacional, parecem todos iguais”, afirma.
A campanha da MTV sobre as eleições, apesar de a emissora
afirmar que não pretendeu incentivar o voto nulo, também colocou todos os
candidatos no mesmo saco. Com zurros de burro ao fundo, a vinheta recomendou:
“Cuidado. De um lado, o governo sujo pela corrupção e pela hipocrisia. De
outro, a oposição que pensa que todo mundo é idiota e não se lembra do que
fizeram quando estavam no governo”. E o que aconteceria se a maior parte dos
eleitores tomasse uma decisão coletiva de recusar todos os candidatos e votasse
nulo?
Nulo na prática
Ninguém sabe, nem mesmo o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE). Um passeio pela internet e pelo Orkut propicia uma festa de aberrações
na forma de campanhas pela anulação. Afirma-se, por exemplo, que os pleitos
(para cargos majoritários ou proporcionais) seriam cancelados caso houvesse
mais de 50% de votos nulos. Isso é conversa fiada, avisa o TSE. No caso da
eleição para deputados federais, estaduais e senadores, pode haver maioria
folgada de votos nulos, que, ainda assim, os deputados tomarão posse. Mesmo se
tiverem meia dúzia de votos. A Constituição garante que servem somente os votos
válidos (excluindo-se os nulos e brancos) e ponto final. Já no caso de
presidente e governador, nem o TSE tem certeza do que aconteceria. É que
existem duas leis conflitantes sobre o tema. A Constituição, de 1988, reza que
valem só os votos válidos. Mas o Código Eleitoral, de 1965, prevê a anulação em
caso de mais de 50% de votos nulos numa eleição majoritária. Se isso ocorrer, o
impasse deve seguir para julgamento do TSE e depois do Supremo Tribunal Federal
(STF), que decidiria ao sabor da pressão política. A democracia no Brasil
provavelmente ficaria abalada. A insegurança política resvalaria na economia,
com os investidores estrangeiros retirando seus dólares do país.
Mas enquanto o voto nulo ficar como quarta ou quinta
preferência do eleitor, por volta dos 10% dos votos, é difícil que vire pressão
política. Isso porque, para muitos especialistas, os políticos brasileiros
pouco se importam com o que o eleitor está pensando. “Poucos vão se impressionar
tal o nível de desapreço à opinião do eleitor, que se mede pelo cinismo com que
políticos trataram os recentes episódios de corrupção”, diz Claudio Weber
Abramo, diretor-executivo da organização Transparência Brasil, entidade que
reúne organizações não governamentais de combate à corrupção. “O voto de
protesto chegou a fazer sentido na ditadura. Hoje, não.”
Quando o país votava escrevendo em cédulas de papel, era
comum aparecerem entre os vencedores personagens esquisitos, como o rinoceronte
Cacareco, campeão de votos a vereador de São Paulo em 1958, ou o bode Cheiroso,
eleito vereador em Pernambuco (veja outros casos na página a seguir). Hoje, sem
a cédula de papel, os bichos estão fora da votação. Para protestar na urna
eletrônica, ou se digita um número inexistente ou se escolhe um candidato
pitoresco. Mas, aí, o risco é grande. Em 2002, por exemplo, 1,6 milhão de
eleitores votaram no excêntrico Enéas Carneiro, do PRONA, para deputado
federal. Ninguém pode dizer se os votos foram por convicção ou deboche. O fato
é que a expressiva votação de Enéas garantiu, pelo critério de representação
proporcional, que outros 5 candidatos de seu partido chegassem ao Congresso com
ele. Alguns tinham menos votos que o bode Cheiroso que conquistou os
pernambucanos.
Sem se valer de bichos ou candidatos diferentões, o voto
nulo perde efeito. “Os corruptos não darão a mínima. Estão blindados por seus
partidos”, afirma o cientista político Bolívar Lamounier. Para ele, outro
problema da anulação seria como identificar o voto de protesto entre os que vêm
de erros durante a votação. Lamounier fez estudos sobre o pleito de 1970,
quando houve uma chamada dos estudantes em favor do voto nulo para desafiar a
ditadura, e o de 1974, quando as lideranças políticas já punham em dúvida esse
expediente. “Conseguimos identificar o protesto em apenas um terço dos votos
inutilizados na cédula de papel. O restante era decorrente de erro ou
desinformação”, diz. “Hoje, com a urna eletrônica, é impossível saber o que é
voto de protesto.”
É por isso que a maioria dos intelectuais e especialistas
em política considera o voto nulo uma bobagem. “Dar uma de avestruz, enfiando a
cabeça na areia e deixar o vendaval passar, é a melhor forma de comprometer
negativamente o futuro do país”, disse à Super o presidente do TSE, ministro
Marco Aurélio Mello. Para ele, já é suficiente fazer uma escolha responsável,
que diminua o poder dos corruptos. “O voto nulo só beneficia os que cometeram
desvios de conduta no exercício do poder.”
Para o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), se os
sujeitos informados optarem por não fazer escolhas, a eleição será decidida por
cidadãos menos esclarecidos. “O voto nulo vai favorecer patrimonialistas ou,
melhor dizendo, ladrões. Eles têm muito dinheiro para gastar nas campanhas
políticas e contam com a desinformação do eleitor”, afirma.
Mas e se quem votasse nulo fossem os menos informados, e
não os eleitores conscientes? É o que pergunta o jornalista Guilherme Fiúza. “O
que é pior: o voto nulo ou o voto entediado? Um eleitorado entediado é capaz,
por exemplo, de eleger uma Rosinha Garotinho em primeiro turno”, escreveu ele
em agosto no site No Mínimo. Desse ponto de vista, o voto nulo não serve como
protesto, mas como exercício de consciência: se o eleitor não conhece os
candidatos bem o suficiente para votar neles, é melhor ficar quieto e não votar
em ninguém. “O tédio pode ser mais anárquico que a própria anarquia”, afirma
Fiúza. Como você vê, há argumentos suficientes para escolher um dos candidatos
registrados no TSE ou anular. O voto nulo pode ser um direito jogado fora, mas
também uma escolha consciente de quem não se sente apto para tomar uma decisão.
Votando nulo ou não, o que não vale é o eleitor não pensar no que faz.
VOTE NULO
• Votar é um ato de renunciar à própria liberdade. Não precisamos
de líderes para nos impor leis e criar regras que limitam nossos direitos.
• A democracia se tornou um espetáculo de televisão. O
eleitor escolhe candidatos como produtos. É preciso negar esse sistema.
• Não é possível mudar o sistema político por dentro dele.
A política muda as pessoas, levando qualquer um à corrupção.
• Os candidatos são cada vez mais parecidos. A briga entre
eles é falsa e serve para que ainda haja esperança na democracia e para que
continuem no poder.
• Se o eleitor não está contente com nenhum candidato, tem
o direito de anular. É uma escolha legítima como qualquer outra.
• Política não é só voto, também é pressão e participação
pública. As eleições sugerem que não há outra atitude política além do voto.
• Se o eleitor não conhece os candidatos, corre o risco de
votar em corruptos. Portanto, sua melhor opção é anular.
NÃO VOTE NULO
• É claro que precisamos de líderes e representantes de
nossas opiniões e desejos. Uma sociedade sem líderes seria anárquica e acabaria
em barbárie.
• O voto nulo tem pouco valor como protesto, já que os
políticos brasileiros não se importam com a opinião do eleitor.
• Mesmo se a maioria da população anulasse o voto, não
haveria efeito nenhum, já que a Constituição considera apenas os votos válidos.
• A corrupção no Brasil está concentrada em alguns grupos.
Basta evitá-los e conhecer bem os candidatos, para a política melhorar.
• Anular é uma atitude alienada, de quem não se importa com
o rumo do país. Retirar-se da discussão é fácil, porém perigoso.
• A política não é só voto, mas ele é uma peça importante
para decidir os rumos do país e não exclui outras formas de ação política.
• Se as pessoas conscientes anularem o voto, a eleição será
decidida apenas pelos menos capacitados.
Casos clássicos de voto nulo
Macaco para prefeito
Em 1988, depois do fracasso do Plano Cruzado, o macaco
Tião, habitante do zoológico do Rio de Janeiro, foi lançado candidato a
prefeito. Terminou em 3o lugar, com 400 mil votos (9,5% do total).
Coronel Cheiroso
O bode Cheiroso é um famoso candidato nulo. Em Jaboatão
(PE), recebeu 400 votos para vereador. Bodes com o mesmo nome já venceram em
Olinda (PE) e Minas Gerais.
Nulos anulados
O maior índice de nulos das últimas eleições para deputado
federal foi em 1994: 25,2% dos votos. Para presidente, foi em 1998, com 10,7%.
Não há registro de que surtiram efeito como protesto.
Para saber mais
A Democracia Brasileira no Limiar do Século 21 - Bolívar
Lamounier, Fundação Konrad Adenauer, 1995
www.transparencia.org.br - Transparência Brasil
www.tse.gov.br - Tribunal Superior Eleitoral
Fonte: Revista Abril.